Mon Chéri, saudoso Mário!¹
Sandra Lee dos Santos Ribeiro
Cá estamos, Conceição e eu, a fazer potins da vida, a falar de dores, amores, sonhos e realizações. Por isso abrimos este portal, e te convidamos a fazer parte de nossas conversas e formar um triângulo literário e poético onde cada ângulo aponta um caminho, como se estivéssemos numa encruzilhada de Èsù.
Fiquei encantada com o teu poema “Feminina” e ele me relembrou das conversas que eu, quando criança, escutava dos adultos que, aos sussurros, diziam “o cemitério é um imenso jardim dos sonhos não vividos”.
Eu, sem nada compreender, ficava imaginando o que seria um cemitério, já que era lugar proibido para nós, crianças; por outro lado, mais um mistério me cutucava a imaginação: o que seria um jardim de sonhos, e o pior, não vividos?
O tempo passou e, hoje, compreendendo todos estes termos e expressões, revisitei a literatura na tua poesia e percebi que, realmente, muitas escritas funcionam como verdadeiros cemitérios, depositando em seus sepulcros desejos natimortos de amores e liberdades.
Por esses motivos, Mário, quero te confidenciar, a partir das mechas branco/pretas dos meus cabelos, que ser mulher sempre me foi um incômodo, como aquele sangramento mensal que me aproximava de todas as minhas dores e me afastava do ser-homem que minha alma gritava desde criança.
O pó-de-arroz, querido Mário, jamais faria parte das minhas aquisições pessoais, mas o desejo de expor o homem que sempre me julguei ser poderia ser colocado em um grande vidro de parfum para que eu pudesse, todas as manhãs, pulverizar meu corpo como forma de proteção e inspiração, a fim de que meus desejos não fossem para um sepulcro.
Se ser mulher, para você, é não pensar na vida, o que seria uma alma não-mulher pensando-se ser homem? Isto sim, seria um potin que enrubesceria a sociedade preconceituosa em que estamos mergulhados, até hoje.
Estamos sim, eu e tu, cada um de nós no seu plano de existência, onde visível e invisível convivem dividindo suas lutas mais íntimas - eu, num invólucro que por um tempo não me reconhecia e tu, na angústia no não-vivido.
Sim, infelizmente os meus seios foram aguçados de forma criminosa, sem a minha permissão e o meu corpo nem teve tempo para se defender e gritar esses horrores, portanto, durante muito tempo ter amores foi impensável.
Mas me diga, querido Mário, ter muitos amantes seria, realmente, um desejo do teu corpo? Pois a mim bastaria saber que, como mulher, teria o direito de amar e ser amada como fui por Miríades, sem a necessidade de esconder-me ou envergonhar-me disso.
Desta forma quebrei o encanto de depositar meus sonhos no cemitério sem tê-los vivido! Fui, apenas, imensamente feliz!
Acredito que o teu desencarne, demasiado cedo, levou-te para junto dos teus amigos nas banquetes dos cafés destes teus dias onde, hoje, certamente, passeias usando meias de seda e, perfumado com pó-de-arroz, olhas a vida pretérita como uma bela experiência terrena.
Querido Mário, Conceição e eu estamos aqui, com nossos cabelos grisalhos, a dar gargalhadas por te percebermos livre e feliz.
Grosses bises, mon chéri.
À tout à l´heure!
Lágrimas de Mulheres, março de 2022.
NOTAS
1. Poeta Mário de Sá Carneiro
Sandra Lee dos Santos Ribeiro
Rio Grande/RS. Doutoranda em Letras na área de Literatura, História e Memória Literária - Bolsista Capes. Mestre em Ed. Ambiental. Licenciada em Artes Visuais (Universidade Federal do Rio Grande -FURG)