Escreviver a diferença em Isaltina Campo Belo:
cacos e reflexos
Alessandra Boos
A Escrevivência é uma escrita que não se contempla nas águas de
Narciso, pois o espelho de Narciso não reflete o nosso rosto (...)
O nosso espelho é o de Oxum e de Iemanjá.
Conceição Evaristo
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As primeiras imagens que a narradora nos fornece de Isaltina Campo Belo são o seu sorriso e o seu abraço afetuoso. Há também o momento da gargalhada cúmplice entre entrevistadora e entrevistada. Só então temos uma descrição da aparência física de Isaltina e da filha desta, Walquíria, que aparece em um retrato. A mãe, apesar dos cabelos brancos, parece ter quase a mesma idade da filha. Após escutarmos o relato de Campo Belo saberemos que ambas têm uma diferença de mais de 22 anos. Campo Belo tornou-se mãe relativamente jovem e até hoje tem um rosto sem rugas, típico de uma mulher negra retinta. A filha demonstra mais a sua idade, 35 anos, uma pista de que poderia tratar-se de uma mulher negra de pele clara, cujo pai biológico é um homem branco ou mais claro do que a mãe. A descrição apresentada de Isaltina e de Walquíria foca no rosto e nos cabelos, partes do corpo que identificam uma pessoa como indivíduo, traços que humanizam. Isso é contrastante em relação às descrições físicas de mulheres pretas encontradas em textos “consagrados” da literatura brasileira, geralmente escritos por homens cisgêneros brancos, em que vemos uma objetificação e hiperssexualização dessas mulheres: “os seios saltavam ponteagudos e as nádegas rolavam no vestido porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dansassem” (Jorge Amado em Capitães da Areia); “E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador” (Aluísio Azevedo em O cortiço). É importante frisar que a descrição desses corpos nas obras de Jorge Amado e de Aluísio Azevedo é conduzida pelo narrador, assim como no texto de Conceição Evaristo. Portanto, a escolha do que esses narradores pensam, julgam, apresentam sobre as personagens é uma escolha (arbitrária ou não) do escritor/da escritora. Porém, a narradora-entrevistadora que “colhe” a história de Isaltina Campo Belo é também uma mulher negra, propensa a olhar para a “entrevistada” com outra forma de compor este corpo negro; ela enxerga alguém que tem uma história a ser contada e que deve ser escutada. Antes de se retirar da narrativa, a narradora abre caminho para Isaltina, colocando-se disponível para a escuta: “Guardei silêncio, o momento de fala não era meu”. A entrevistada torna-se narradora. A mulher objetificada torna-se autora da sua própria história.
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No conto “Isaltina Campo Belo”, vemos o doloroso processo de uma pessoa se reconhecer um sujeito desejante fora da cisheteronormatividade e da heterossexualidade compulsória. “O que me confundia era o caminho diferente que os meus desejos de beijos e afagos tendiam”, ela diz. De que condições dispõe uma pessoa criada como uma mulher negra cis em uma família de classe média baixa para entender o seu lugar no mundo e outras possibilidades de existir? A partir da observação, Campo Belo ainda criança identifica os diferentes dispositivos usados para colocá-la em seu lugar de mulher: os nomes, as roupas, as brincadeiras permitidas ou interditadas, a menstruação. Já na vida adulta, conhecerá formas ainda mais violentas de enquadrá-la como mulher: o estupro e a maternidade forçada. O mentor do estupro coletivo é um rapaz conhecido de Isaltina que já insistira em um relacionamento com ela, que prometera “fazê-la mulher” e tirar qualquer dúvida sobre o sexo entre homens e mulheres. Todas essas promessas (ou já seriam ameaças veladas?) foram feitas após a confidência de Campo Belo: “desde sempre carrego um menino comigo”. Por habitar um corpo negro, um outro elemento se soma à pilha de promessas-ameaças: o racismo, explícito na seguinte passagem: “E afirmava, com veemência, que tinha certeza de meu fogo, pois afinal, eu era uma mulher negra, uma mulher negra…” Diferentemente dos textos mencionados de Jorge Amado e de Aluísio Azevedo, no texto de Conceição Evaristo não há uma descrição detalhada do corpo de Isaltina e do desejo que supostamente ele deveria despertar nos homens. Estamos lendo o relato da vítima de uma violência. O lado geralmente silenciado dessas histórias. A violência não se restringe apenas à violação do corpo. Após o acontecido, Campo Belo abandona o trabalho, sente-se insignificante e tem sentimentos de culpa. Percebe-se gestando um bebê no último trimestre de gravidez. O ciclo de violência está completo.
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Ao ver o seu desejo refletido no olhar de uma semelhante, Campo Belo entende a si mesma (ou ao menos perdoa a si mesma quando acreditou por muito tempo que o estupro teria sido punição por não gostar de homens). O próprio nome desta mulher que Campo Belo amou carrega tanta possibilidade: uma miríade, uma imensidão. Talvez Isaltina criança e adolescente não tivesse a chance de olhar para as mulheridades das Outras e enxergar a multidão que a olharia de volta. Não. No seu espelho apareciam essas figuras femininas estereotipadas como a mãe enfermeira (profissão tipicamente feminilizada) e a irmã mocinha; assim como a família convencionada ideal: papai, mamãe e filhinhos. Onde estariam as meninas que carregam meninos dentro de si? Onde estariam as meninas que gostam de meninas? Sem condições de romper com os esquemas tradicionais ao seu redor, a saída encontrada por Isaltina Campo Belo foi enterrar os seus desejos dentro de si. Ainda assim, tenta ser fiel a si mesma e quando perguntam se tem namorado, ela fala a verdade: não. Quando o rapaz propõe namorá-la: não, não tem como. O mundo e os desejos de Campo Belo. O mundo insiste que ela tem um namorado secreto. O mundo insiste que ela deve gostar de homem. O mundo insiste que ela deve tornar-se mulher. Ao conhecer Miríades, o desejo vem à superfície e Campo Belo faz uma escolha diferente. Mas a natureza dessa escolha é escorregadia. Teria Isaltina desistido de sua transgeneridade? Ou teria se entendido como lésbica? O relato da infância teria sido fruto de fantasia infantil ou fragmentos de uma infância trans? O que sabemos é que o arranjo construído por Isaltina, Miríades e Walquíria fissura esses velhos espelhos.
NOTAS:
1. Como dizia o poema de Angélica Freitas: “porque uma mulher boa/ é uma mulher limpa/ e se ela é uma mulher limpa/ ela é uma mulher boa”.
2. A descrição dos dentes de Rita Baiana por Aluísio Azevedo neste fragmento me fez lembrar da prática de analisar os dentes de pessoas negras escravizadas para venda ou aluguel no Brasil escravocrata.
3. Apesar de Isaltina Campo Belo afirmar que teve uma infância sem muitas dificuldades, tanto o pai quanto a mãe da personagem tinham além de um emprego formal, trabalhos extra para dar conta das despesas da família.
ALESSANDRA BOSS nasceu em Blumenau, em 1984. Tem textos espalhados pela internet desde o começo dos anos 2000. Integrou as coletâneas de contos do SESC-Santa Catarina: “O Livro das Metamorfoses” e “Dez”. Publicou o livro “Vermelho Vivo” pela Rizoma Projetos Editoriais em 2021. Atualmente é um corpo docente e dançante que vive em Florianópolis, de onde escreve para os perfis no instagram @amulhereducada e @ale_boos_